Depoimento de uma viajante no Quénia (parte 2)

13-06-2024

"Quénia: o abismo que quis ser viagem"

as palavras que agora escrevo teriam sido exóticas, polémicas, talvez místicas mas certamente diferentes, se eu não tivesse ido a Kibera. teriam contado a tristeza endémica dos quenianos, a dinâmica corrompida na administração da coisa pública, quem sabe a apoteose africana da tirania monetária, mas as palavras que agora escrevo não seriam, com certeza, sobre uma favela.

havia, antes do Quénia e dos outros, uma dúvida que eu não tinha que era a certeza de que o mundo subdesenvolvido precisa de ser visto. e se precisa de ser visto, ainda mais de ser cheirado, pois se as imagens se eclipsam num segundo no nosso quotidiano esterilizado, o olfato empenha-se bem em relembrar-nos.

os países felizes parecem-se todos uns com os outros e os infelizes são-no cada um à sua maneira. Tolstói teria concluído o mesmo, alguns aviões depois. pela minha parte, vi já pobreza em diferentes trópicos, mas quase sempre miséria dançante. ainda não tinha conhecido um povo que não ri. que não chora por fora. que não prevê uma saída.

mas dizia: seriam estas as palavras que aqui estariam caso não tivesse ido a Kibera, diz-se por aí a maior favela de África. ali conheci organizações que garantem subsistência, higiene, educação e segurança à população, enquanto o Estado se demite alegremente das suas próprias funções. muitas destas organizações contam com a ajuda financeira dos apadrinhamentos que chegam de países desenvolvidos, regra geral pessoas bem intencionadas que escolhem abdicar de dois pares de sapatos e aplicar esse valor na alimentação anual de uma criança queniana. uma parte considerável das pessoas que sustentam estas organizações no terreno abstém-se do privilégio que é ser europeu e poder ser-se o que se quiser e vivem em Nairóbi onde se é o que se puder, ali residindo durante décadas à custa sabe-se lá de quanta musculação mental. muitas delas são mulheres que vivem num país profundamente machista, onde ainda se paga o dote pelo casamento, onde a violência doméstica é o pão nosso de cada dia, onde os miúdos fazem figas para que os xelim estiquem até ao fim do mês e o pai não açoite a mãe por causa da fome e do resto. são mulheres que vivem num país assim, perturbador, onde um masai só prostrado pelo seu metro e noventa perante a ombreira da porta de metade da sua altura pode equacionar prestar vassalagem a uma das suas muitas esposas. são pessoas que carregam malas e bagagens de embalagens de plástico para reciclar sabe-se lá onde, recusando-se a ser mais uma peça na engrenagem da lixeira a céu aberto que é Kibera. são pessoas que se desdobram em explicações sobre a utilização de cuidados íntimos numa cultura onde as adolescentes se prostituem por pensos higiénicos para escapar à vergonha de falar sobre o assunto com os progenitores. são pessoas que renunciaram à febre do hakuna matata e adotaram o deal with that.

eu quis abraçá-los. os voluntários, aquelas crianças, sentá-los a todos na minha casa, curar-lhes as dores da alma, as minhas, chorar por todos e depois por cada um. quis fazer reset ao mundo, livrar-nos a todos deste ciclo cada vez mais vicioso, dizer-lhes que já chega, que a devoção à causa valeu por eles e pelo resto da freguesia, que já podiam regressar connosco.

não viriam. estariam distraídos dentro de um qualquer matatu a farejar o próximo necessitado, estariam a recolher cães mal degolados na pressa de os extinguir e por isso mesmo não estariam a escutar ecos ocidentais de sofá, banheiras e lógica.

a verdade está ali, nua e crua, pronta a ensinar como ainda se vive no século vinte e um. podemos olhar para o lado. podemos medir a distância de segurança que nos aparta dos horrores que se vivem em África. podemos continuar a ignorar que a única barreira que nos separa é o equador, e que até ele é uma linha imaginária. mas a verdade está ali: temos estado a arrendar o mundo a um preço demasiado elevado, a um preço de humanos ao quilo que a coletividade não deveria nunca ter admitido pagar. mas nós não precisamos de ser eles, aquela balança a equilibrar o globo num só gesto. nós só precisamos de ser um pouco mais.

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